sexta-feira, outubro 20, 2006

Saudade/Remake

Estou começando a publicar, hoje, meus escritos desde o começo da faculdade e que nunca foram mostrados a ninguém, somente o fiz no CMI. Não sei bem o que pretendo com isso, mas estou com várias saudades...
Começarei por este que me é muito caro, pois chegou de alguma forma às mãos do artista plástico Edson Barrus. Este me mandou um e-mail muito importante para mim. Agradeço a ele por me mostrar, na prática, o que Derrida falava sobre a traição do subjétil e como a verdadeira leitura se faz na mente do espectador.
(Mila Sacco)


Meu olhar sobre o Cão
Ainda na década de 90, em uma das edições do Itaú Cultural, São Paulo, foi apresentada uma instalação intitulada “Cão Mulato” de autoria de Edson Barrus. Tratava-se de estranha traquitana, engenhoca, feita com equipamento de informática obsoleto. Na verdade sucata garimpada no lixo da sociedade informatizada. Monitor, cpu, impressora e, sei lá mais o que, interligados a outros debaixo de uma barraca feita de retalhos de restos de roupas e tecidos usados.
Parecia impossível que aquilo tudo funcionasse. Mas, não só funcionava como de forma matricial, imprimia incansavelmente:
cãomulatocãomulatocãomulatocãomulatocãomulatocãomulato cãomulatocãomulatocãomulatocãomulatocãomulatocãomulato cãomulatocãomulatocãomulatocãomulatocãomulatocãomulato...

Costuma-se denominar de cão todo aquele que possui o menor valor possível. E o que vem a ser mulato? Talvez aquele a quem é negado, até mesmo, o direito de pertencer a uma etnia. Logo, o quê pode estar, numa escala de valores arbitrária, abaixo de um cão mulato? No entanto, lá estava a traquitana inquietante a repetir:
cãomulatocãomulatocãomulatocãomulatocãomulatocãomulato cãomulatocãomulatocãomulatocãomulatocãomulatocãomulato cãomulatocãomulatocãomulatocãomulatocãomulatocãomulato...

Já não é de ontem que se faz arte de lixo, que o diga o mestre Hélio Oiticica. Mas, a questão aqui é: o restolho da mídia, o dejeto da indústria cultural pode se autoreciclar? Degradar-se, re-organizar-se produzindo um novo organismo? Assim, como dizia Chico Science: “me organizando posso desorganizar, desorganizando posso me organizar”.
Pois é, tendo há muito tempo silenciado na memória o ruído da engenhoca, dou de cara com ela, estava lá na MTV, dando entrevista, com a maior cara de cão mulato, um tal de Marcelo D2.
Estava posto o paradoxo: o cão mulato agora era indústria na MTV e, ainda ontem, era lixo; dependendo, é claro, do momento em que se olha e congela o movimento do anel da reciclagem.
Faz pelo menos meio ano que escuto a colagem e bricolagem de lixo e cultura do cara e ainda tem coisa lá neguinho, tem coisa lá... Me re-apaixonei pelo cão mulato e tô me perguntando: Qualé neguinho, qualé?! É tem alguma coisa lá no
hip-hop...
(Mila - set 2003)


Deu pra ti Negra Li
Ao mesmo tempo em que lia na web que centenas de soldados e policiais, a pé ou a cavalo, controlaram os movimentos da multidão e que tanques antidistúrbios foram posicionados nas imediações da festa batizada de "África Unida" - show em homenagem aos 60 anos de Bob Marley, na Etiópia - assistia ao show da Negra Li na MTV. É incrível como ajuntamento de povo mete medo nas autoridades, principalmente se forem negros comemorando um líder. O que não é o caso da nossa conterrânea, a Li. Parece que este se trata de um evento bem menos preocupante para as autoridades. Afinal, o pessoal que vive sob o signo da Nike é bem menos ameaçador, um caso apenas para segurança particular mesmo.
Já há algum tempo penso em dar uma olhadinha no trabalho da moça. Sabe como é, pra ver qualé neguinha? Então lá estava ela dando performance no “Circo da MTV” e, lógico, como não poderia faltar: com logo.
Como gosto de Hip-hop tento ser paciente com essa mania que os manos têm de ostentar no peito o carimbo da casa grande. Como aqueles filhos caçulas, adolescentes, dos quais se tenta compreender as incríveis incoerências. E estava lá a Negra Li, com seu novo cabelo black, vestida com uma simpática e antenadíssima jacket metálica com as famosas três listras retrô e ostentando no peito a marca Adidas.
Sem dúvida, tudo a ver! A mina tá cabendo legal no papel de “neomucama”. Ou então não foi avisada da gigantesca senzala do mundo colonizado que hospeda, pelo tempo que convier aos donos dos carimbos, as fábricas das jackets antenadíssimas da nossa mucaminha. Nestas fábricas/senzalas homens e mulheres, sem garantias nem futuro, trabalham produzindo as peças usadas pelos manos e pelas minas da hora.
É interessante observar a fascinação que estas roupas com marcas como Nike, Reebock, a própria Adidas, entre outras, exercem no imaginário dos jovens de países periféricos. Quem já não ouviu falar naqueles casos de roubos e até assassinatos motivados pelo desejo ensandecido, despertado e estimulado pela propaganda e, ainda, reforçado pelos artistas, fiéis adeptos de marcas globalizadas? Porém, todos conhecemos o dito: a propaganda estimula o consumo de produtos que a maioria não tem meios para consumir. Assim, o consumo de produtos, digamos, não oficiais, é simultaneamente estimulado.
Engorda-se a clientela da pirataria. Legal! Sempre gostei de histórias de piratas. Acho que é algum tipo de anarquismo ou vingança das massas manipuladas pela mídia. Mas, que ironia! Lá no meio destes produtos “alternativos”... no canto da prateleira do camelô... ali no cantinho... não é o Cd da Negra Li e o do D2?!
Mundo pequeno esse, né?
Sinceramente, aqui vai o meu recado, não no mic, mas no teclado (que sou a favor da inclusão digital): Já tá além da conta a postura de mucama do Hip-hop. Francamente não dá para fazer merchandising das marcas bordadas nos bonés e impressas a ferro e fogo nos corpos e mentes dos trabalhadores semi-escravos.
Definitivamente: deu pra ti, Negra Li!
(Mila - fev 2005)

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