sexta-feira, outubro 20, 2006



UMA FENDA NO TEMPO
(mais um das antiga)


Considere que, em pleno centenário da teoria da relatividade, estamos vivendo uma aceleração do tempo. Presos em um torvelinho de atividades e pensamentos automáticos e repetitivos, se forma uma casca em torno das nossas vidas. Essa vertigem diária impede a contemplação e análise do quotidiano da construção social. De repente, a casca começa a produzir fissuras, frestas através das quais se pode espiar a nós mesmos e aos outros. São fendas no tempo que nos permitem congelar imagens que falam de nós muito mais do que poderíamos presumir. Destas escorre arte contemporânea.
Voltando no tempo retroceda até aos tempos de Vermeer, século XV. Quanto de tempo teria ele gasto para conceber sua “A Leiteira”? Uma cena corriqueira de sua organização familiar e que, no entanto, congela a imagem projetando para a contemporaneidade a poesia lenta dos dias do pintor. Lenta porque aqueles eram dias lentos. As mulheres da vida e da casa de Vermeer se movimentavam lentamente em direção às janelas e por estas entrava uma luz também lenta. Uma velocidade que talvez permitisse luz à poética daquelas sentimentalidades clandestinas que ele retratou.
Como não gosto de saudosismo, especialmente daquele que remete a coisas que não vivi ou que pelo menos não tenho consciência de tê-las vivido, voltemos para 2005. Aqui reside minha paixão: a bricolagem frenética das imagens e seus significados. Essas produzem com velocidade alucinante, outras imagens de mercadorias obsoletas como celulares-tijolos, celulares que emitem constrangedoramente a 9ª Sinfonia de Beethoven, disquetes de 5 ¼, disquetes de 3 ½, Zip drivers, carros sem injeção eletrônica... E quem diria, uma ponte, um sucatão que costumava ligar Pelotas a Rio Grande. Até quando mesmo? Não lembro. Mas ontem à noite; lá no ILA (Instituto de Letras e Artes), Alberto Rosa, número 69; a vi exposta com o nome de “Reponte” (Alexandre Lettnin). Na mesma ocasião/exposição, mas em outra parede, havia “Fendas” (Helene Sacco). Frestas por onde escorria o quotidiano imagético. Nelas se podia espiar a vida ou será que eram elas que nos espiavam? As fendas tinham o poder de recortar a realidade e a deslocar no tempo e espaço, produzindo um congelamento. Algo como: “parem o mundo que eu quero espiar”. É interessante observar como frestas, fendas, rachaduras e dobras têm o poder de atrair vida. Destas é que brota, numa espécie de biogênese invisível, “Minha Casa” (Paulo Damé), abrigo do olhar. Em outra parede, de lado oposto, uma gaveta acomodava memórias em branco, “O que você guarda em suas gavetas?” (Kelly Wendt), contos da biogênese a espera de uma vivência temporal ao gosto da tecnologia ainda imprevisível. Mas, a primeira coisa que se vê, na sala de exposições do ILA, é “Fronteira do Visível” (Helena Canaã), sintetizando todo o resto: as imagens frenéticas presas e esmagadas pela dobra do tempo formando um borrão no espaço.
(Mila Sacco - ago 2005)

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